terça-feira, novembro 13, 2007

Crítica literária: A Saga de Um Pensador

ATENÇÃO:
Há vários
spoilers no texto que se segue; se quiserem ler o livro, ficam por vossa conta e risco.

Após ter ouvido múltiplas opiniões favoráveis sobre o livro, a minha curiosidade aguçou-se e arranjei modo de mo emprestarem. A pedido de várias famílias, deixo por estas bandas a minha opinião pessoal sobre o mesmo.

Nota: Sim, eu sei que o comentário é enorme, e percebo se não tiverem paciência para o ler todo... Nem sequer garanto que valha a pena perder tempo com ele. Considerem-se avisados!

Foi com uma certa expectativa que peguei no livro na minha jornada para casa. Li-o no metro, li-o no comboio e tive mesmo que o acabar o mais rapidamente possível - as razões para tal serão rapidamente explicadas.

A narrativa começa com a entrada de um rapaz, Marco Polo, na faculdade de Medicina. Jovem, inquisidor, com inquietações filosóficas. Aquando da primeira aula de Anatomia, tem, juntamente com os colegas, o primeiro contacto com cadáveres, que servirão para dissecção e estudo. Como quem visita o blog sabe, nós não olhamos para os corpos a tentar deslindar-lhes um ar de "doçura" no rosto. Aliás, se o houve, há muito que desapareceu. As faces ficam rígidas e inexpressivas, isto quando não se encontram num esgar estranho. Também não me parece que tenha sido muito comum discorrer sobre o sentido da vida e o papel da Humanidade no mundo quando o cheiro a formol nos ataca o primeiro par craniano. Mas enfim, posso ter sido só eu a reagir assim.

Acima de tudo, nenhum de nós teve a ideia peregrina de querer saber a identidade dos dadores de corpos (pessoas de enorme mérito e altruísmo para com a ciência, indiscutivelmente) e, mesmo que embarcasse nesse tipo de divagação mental, não o perguntou alto e bom som aos professores. Aliás, perguntar se quem lá está não chorou, riu, teve emoções e uma vida preenchida não é exactamente o que se costuma fazer, tal como não o é de cada vez que se entra no cemitério e se passa por dezenas de túmulos em que os átomos dos falecidos reentram no grande ciclo cósmico. Claro que as pessoas que generosamente ofereceram os seus restos mortais tiveram existências mais ou menos felizes, mas as palavras-chave aqui são "restos mortais". Os corpos são cascas vazias, quem lá habitava há muito que partiu.

Passe-se a improbabilidade de o aluno (com um nome próprio bastante infeliz...) conseguir averiguar a proveniência de um dos corpos. Passe-se ainda o facto de com meia dúzia de esfregadelas na imundície ele conseguir ganhar a confiança de um sem-abrigo inveterado e livre pensador que, veja-se!, era doutorado em Filosofia. Para além disso, o mendigo mencionado era um esquizofrénico que, graças à ajuda do outro sem-abrigo (por sinal médico, que tinha ido parar à mesa de dissecção), sem farmacoterapia nem coisa que o valha (aliás, a classe psiquiátrica é desacreditada ao longo de todo o livro), consegue tratar a sua psicose! Brilhante. Através da questionação constante, ele consegue pôr em dúvida as próprias alucinações e perceber que elas não existem. Não percebo o objectivo dos anti-psicóticos, quando com filosofia se conseguem resultados bem melhores.

Marco Polo continua a sua demanda pela compreensão da raça humana. Fica muito surpreendido ao verificar que nos serviços de urgência as pessoas com, por exemplo, dores no peito sem patologia física que justificasse os sintomas são enviadas embora com analgésicos e sem um diálogo profundo acerca de eventuais perturbações emocionais que estejam a ser somatizadas. Qualquer um de nós que já tenha estado nas urgências naqueles dias de verdadeiro caos sabe bem que não há tempo para muita conversa. Frequentemente ela tem mesmo que cingir-se ao essencial, ou os atrasos de que os doentes se queixam aumentariam exponencialmente. Ao que parece, o autor não conhece essa realidade...

Claro que o protagonista escolhe Psiquiatria como carreira. Vai sendo continuamente incompreendido, mas prova-se sempre que as suas teorias pouco ortodoxas têm resultados inéditos e fantásticos. Põe sempre em dúvida o que lhe é dito e consegue sempre mostrar a sua superioridade intelectual sobre seja quem for. E acaba por apaixonar-se por uma estudante de Psicologia depressiva, oriunda da classe social mais alta que se possa imaginar e que previsivelmente repudia as suas origens, que se cura praticamente de um momento para o outro graças aos seus talentos de psicoterapeuta. Felizes para sempre, fim.

Ao longo de toda a obra, as personagens que representam autoridades intelectuais estabelecidas são sempre prepotentes e cegas, profundamente ciosas do seu estatuto, orgulhosas e arrogantes, mas que Marco Polo desafia e vence, pelo menos na arena intelectual. As personagens com patologia mental são retratadas como iluminadas, rejeitadas pela sociedade mas detentoras da verdadeira sabedoria de vida, as únicas apreciadoras da beleza e capazes de actos altruístas.

Marco Polo consegue chegar onde mais ninguém chega, comunicar com mendigos misantropos e doentes psicóticos, ridicularizar apresentações científicas, pôr toda a gente a reflectir sobre as questões mais primevas da Humanidade, dar palestras como ninguém, e ainda disfarçar-se com enorme credibilidade. O homem é imbatível.


Não posso deixar de comentar o estilo de escrita do autor, que foi do que mais me surpreendeu. Sabendo-o psiquiatra, e tendo sido tão elogiado, esperava algo mais fluente, com uma escrita apelativa, quiçá requintada até. Não o é, de todo. A escolha de vocabulário é primitiva e alguns dos diálogos chegam mesmo a tocar a inverosimilhança. Nunca suspeitaria de que é um psiquiatra, até porque se chega ao fim do livro com a nítida impressão de que a psicologia é que é óptima e os psiquiatras são uns obcecados por neurotransmissores e abandonaram a busca pelo verdadeiro ser, aquilo que define as pessoas como tal, as suas vivências e emoções.

Os temas aflorados na obra são de facto interessantes. Até que ponto seremos nós, os "normais", mentalmente sãos? Até que ponto somos manipulados pela sociedade? Quem somos e qual o propósito da nossa existência? Haverá algo para além disto? Et cetera. A forma como o autor os aborda é que é superficial. Bem que devorei o livro, para tentar encontrar um ponto positivo no meio de tudo aquilo, mas não encontrei.




Por aqui me fico. O apelo da Psiquiatria (numa outra vertente) começa a ser mais forte, com aquela sensação de corda no pescoço tão familiar. A quem também já o leu, deixo o espaço aberto para comentários...