quinta-feira, dezembro 11, 2014

Hair-raising Report

Pois bem, chegamos ao fim do ano e é preciso fazer um relatório de actividades para ser discutido e classificado.
Em anos anteriores o principal comentário negativo aos meus relatórios tinha que ver com a minha "análise crítica".
A minha principal preocupação relativamente a esse elemento do relatório foi sempre a interpretação dos meus dados de consulta: o problema A remete-se à questão 1, muito comum na nossa consulta por causa de blá, blá, blá.
Não é esse o tipo de "blá, blá, blá" que interessa às pessoas que me vão avaliar.
A intenção por detrás da "análise crítica" não é compreender as questões inerentes à consulta mas a minha reacção ao que fiz. Uma reacção que implica reflectir sobre as minhas dificuldades e sugerir formas de as ultrapassar, porque tem de haver dificuldades (nada se "ultrapassa de forma natural").
Portanto, como espécie de ensaio vou tentar fazer essa reflexão neste espaço (até porque parece-me menos aterrador começar aqui que no relatório propriamente dito).

Em Abril de 2014, após o meu estágio de 3 meses no Serviço de Psiquiatria do Hospital Santa Maria (durante esse estágio o contacto com a Unidade de Saúde Familiar (USF) foi semanal), passei a ter agenda própria de consultas.
A minha orientadora iniciou a sua licença de maternidade em Dezembro de 2013 e essa licença previa-se continuar até Setembro de 2014. Isto significa que uma lista de aproximadamente 2000 pessoas ficaria, tecnicamente, sem Médico de Família (MF) durante quase 9 meses. O que aconteceu efectivamente foi a distribuição dessa lista pelos outros profissionais da USF, acrescendo às suas listas individuais.
A organização de uma USF assim o permite, há uma forma de pensar os cuidados de saúde mais flexível e direccionada para o utente (nem todos são doentes) e não faz sentido tantas pessoas ficarem sem atendimento.

Voltando atrás, a meados de Março reuni-me com a coordenadora médica da USF e a coordenadora do pessoal administrativo e tentámos estruturar um horário de consultas para esses 5 meses que fizesse sentido tendo em conta as necessidades da USF e dos utentes (não necessariamente nesta ordem).
A escolha da distribuição do horário foi repartida com os outros dois elemento que referi mas em grande parte reflecte o que eu julgava serem as prioridades da população e da USF. Ou seja, isso resultou num grande enfoque nas consultas programadas, ou melhor, nas consultas de determinados programas de saúde, nomeadamente, as consultas de Diabetes, Saúde Infantil e Juvenil e Saúde da Mulher (que inclui o Planeamento Familiar, Saúde Materna e Rastreio de Cancro do Colo do Útero). Em retrospectiva esta não terá sido a melhor opção.
As razões para isso? Não ter prestado (suficiente) atenção ao horário da minha orientadora (embora tenha influenciado fortemente as minhas escolhas de número de consultas de determinados programas) e não conhecer bem a população da sua lista.
Mesmo durante a feitura do horário foi-me sugerido alterar determinado tipo de consulta para outro (especificamente, da consulta de Diabetes para Saúde de Adultos). Essas sugestões foram tidas em conta e as alterações foram feitas, o que não significa que o esquema de consultas fosse mesmo assim o mais indicado.

De qualquer forma, na segunda semana de Abril (atrasos em relação à minha "informatização" fizeram com que se adiasse) tinha agenda própria com marcações.
O plano inicial seria, dada a minha inexperiência a gerir um horário completo, ter algum intervalo entre consultas para reorganização e planeamento. Este tipo de "protecção" não durou muito tempo, antes do final de Abril já tinha um horário completo com consultas de 20 em 20 minutos ou menos consoante o tipo de consulta.
Isto aconteceu assim por duas principais razões: primeiro, a população da minha orientadora já tinha "médico de família" e portanto começou a pressionar o pessoal administrativo (que se viu incapaz de dizer que não) para efectuar a marcação de consultas; segunda razão, eu não fui capaz de contrariar esta situação.

Para piorar tudo, a minha gestão do tempo de consulta não era a melhor.
Quando acompanhado pela minha orientadora, as minhas consultas podiam chegar a atingir os 45 minutos de duração, o que era muito bom para o doente - pois era visto de uma forma mais completa e sentia-se mais satisfeito com a consulta - e para mim, que acabava por ter tempo para ter uma consulta mais pausada e organizada.
Ora tendo um horário completo de consulta foi necessário agilizar os mecanismos de estruturação de consulta, o que implicou um direccionar da atenção aos motivos explícitos da consulta, "protocolizar" os passos da consulta e ser mais rápido e sucinto nos registos. Mesmo assim, as consultas chegavam a ter uma hora de atraso, especialmente as que implicavam mudança de gabinete (as consultas de Saúde da Mulher e Saúde Infantil situam-se em pisos diferentes e estão associadas à consulta de enfermagem prévia que, por motivos inerentes a essa consulta, também podiam atrasar-se).
Com o passar do tempo, o "streamlining" da consulta tornou-se mais fácil e através de determinadas estratégias (por exemplo, cumprir de forma mais criteriosa os passos do registo SOAP); um melhor conhecimento do funcionamento dos programas informáticos; fotocopiar os exames para efectuar o seu registo posterior; usar abreviaturas nos registos; usar apontamentos para efectuar as referenciações  necessárias mais tarde) a consulta passou a efectuar-se de uma forma mais fluída e o tempo de atraso reduzira-se para uns "meros" 20 minutos.
Ajudou também a a autonomia na gestão da consulta, ou seja, a minha capacidade de marcar consultas de seguimento. Estas consultas programadas, de acompanhamento, acabavam por ser mais rápidas já que tinha conhecimento da consulta prévia e os motivos da consulta presente.

Entramos, assim, no campo da gestão da consulta.
Se, inicialmente, o horário da consulta estava direccionado para determinado tipo de consultas (o caso mais flagrante será o da consulta de Diabetes, onde tivemos que recorrer à convocatória dos doentes e até marcá-los para espaços fora da consulta específica), mais tarde foi necessário repensar a agenda.
O tempo de consultas de determinados programas aparentemente era maior do que o necessário já que muitas vezes sobravam vagas (mais notório nas consultas de Saúde da Mulher, provavelmente por razões que vou explorar mais abaixo).
A reestruturação da agenda era necessária mas devido a necessidades administrativas manteve-se (informaticamente) como planeada inicialmente. Isto não significa que não fosse possível marcar outro tipo de consultas naquele horário. Felizmente, há espaço para este tipo de flexibilidade, quer em termos administrativos, quer em termos do nosso Sistema de Apoio ao Médico (SAM).

Relativamente à questão da minha autonomia na consulta, antes da ausência da minha orientadora já tinha uma autonomia parcial - fazia a consulta (anamnese, exame objectivo, avaliação e pedido de exames) em gabinete próprio e recorria à minha orientadora em caso de dúvida, seja em termos de exame objectivo como decisão terapêutica ou no pedido de exames.
A ausência de orientador não implica ausência de orientação. A equipa da USF (seja da parte médica, de enfermagem ou administrativa) esteve sempre disponível para me tirar dúvidas e dar o apoio necessário para a minha formação. 
Mas a verdade é que a relação com o orientador é diferente. Considero que, sim, houve um ganho de maior autonomia da minha parte com os ganhos e perdas inerentes a esse processo.
As minhas decisões clínicas passaram a ser fundamentadas de forma diferente, refiro-me em termos de estudo teórico e da normas da Direcção Geral de Saúde. Esse estudo é essencial à formação médica mas deve ser temperado com uma dose de experiência de forma a evitar rigidez na forma de pensar um caso clínico que, no fim de contas, é uma pessoa. 
O princípio da justiça na Medicina não tem a ver com tratar todos os doentes de forma igual mas, sim, "tratar de forma igual o que é igual e desigual o que é desigual".
Se se pode fazer a crítica de que o estabelecimento de normas de orientação clínica tem muito a ver com questões de carácter economicista, também se pode dizer que têm uma fundamentação forte na medicina baseada na evidência e que é necessário sistematizar a abordagem de determinadas situações clínicas.
O recurso a guidelines e normas é importante para a formação de um jovem médico de família mas deve ser ponderado.
Esta situação só vem realçar a importância da figura do orientador, cuja função é essencial para a melhor formação do interno, apesar de estarem na moda determinadas políticas que querem aproximar o internato de Medicina Geral e Familiar dos moldes do internato de especialidades hospitalares e não pela positiva.

Esta crescente autonomia permite, também, menos interrupções à consulta, desenvolvendo-se de uma forma mais natural a relação médico-doente.
De uma forma ou outra, o médico de família destes doentes durante este período fui eu. Isso implicou uma maior familiaridade com determinados doentes e uma melhor compreensão da sua situação clínica e não só, já que não houve um acompanhamento "entrecortado" por consultas com outros médicos.

Em termos das consultas relativas a programas nacionais de saúde (Diabetes, Saúde da Mulher, Saúde Infantil e Juvenil), estas são consultas mais estruturadas e que seguem protocolos específicos.
Embora eu já tivesse um conhecimento geral do funcionamento das consultas, quero dizer, das etapas específicas de cada consulta  de um determinado programa de saúde, este período serviu para perceber o seguimento global de, por exemplo, um diabético, uma criança ou uma grávida. Ou seja, acompanhar de forma longitudinal um doente - ser eu a ter que cumprir todos os requisitos de determinada consulta (refiro-me particularmente à consulta de Saúde Materna).

Uma consulta relacionada com programas de saúde que não correu de forma tão positiva foi a de Planeamento Familiar (PF). Foi evidente uma diferença entre o número de faltas nessa consulta quando comparada com as outras.
As razões para isso provavelmente terão a ver com o desconforto das utentes de serem atendidas por um "médico-homem". Embora a maioria desse tipo de relatos provenham de terceiros (nomeadamente das administrativas), posso contar o caso de uma utente que foi bastante sincera e admitiu que só queria ser vista pela minha orientadora precisamente por causa do meu género.
Outras razões que podem estar associadas a estas ausências poderão ter a ver com o seguimento em consulta particular de Ginecologia e, também, a minha falta de "traquejo" em aproveitar a presença das utentes noutro tipo de consulta para marcar uma consulta de PF.

Outro momento que quero realçar prende-se com uma das actividades obrigatórias no 3º ano de internato de MGF - a autoscopia.
A autoscopia trata-se de uma consulta gravada (com o consentimento do doente) que depois é discutida em grupo com outros orientadores e com, supostamente, um psicólogo (não havia nenhum presente na altura da discussão, infelizmente). Não se trata de de uma avaliação de conhecimentos clínicos mas da postura na consulta e da relação médico-doente.
A escolha que fiz (tinha 4 gravações preparadas) pareceu-me a mais representativa do que seria uma consulta típica minha (em termos de ritmo e postura profissional), apesar de saber que tinha cometido um "erro" no pedido de um exame.
Na verdade, foi-me chamada a atenção em relação a isso, não por ter repetido um exame que evitaria (a curto prazo) outro tipo de investigação mais desconfortável para o doente, mas por "não conseguir dizer que não ao doente", o que já sabia ser uma falha minha (já dizia isso a Hygieia no quarto ano de faculdade mas com uma expressão "mais pitoresca").
A discussão daquela consulta fez-me aperceber que há situações que não podemos ser flexíveis com um doente pois estaremos a prejudicar-nos e ao doente. Tenho vindo a corrigir esse comportamento desde então.

Resumindo, este ano de internato foi atípico relativamente às experiências dos meus outros colegas do terceiro ano. Tive a oportunidade de gerir uma lista e consulta com algumas dificuldades que fui tentando resolver, recorrendo a determinadas estratégias e ao apoio da equipa do centro de saúde.
Julgo ter-se tratado de uma boa experiência, para além de ter tido um espaço meu para desenvolver as minhas competências, ganhei mais autonomia e confiança nas minhas decisões clínicas.
Contudo, não dispenso de nenhuma forma a presença e apoio diário da minha orientadora e creio que este tipo de situação deve ser uma excepção e não a regra no nosso internato (falo, precisamente, das Unidades de Internos que, por mais boas intenções tenham, podem ser apropriadas indevidamente por políticas populistas), por mais benefícios que tenha colhido pessoalmente.

segunda-feira, novembro 17, 2014

Contemporaneidade


"Um dia, vão olhar para trás e ver o psiquiatra de hoje como nós vemos o cirurgião-barbeiro."

sexta-feira, outubro 24, 2014

"Ciência, meus amigos. Ciência!"

Estou cansado.
Estes dois dias, 24 e 25 de outubro, realiza-se na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, o 13º Encontro Nacional de Internos e Jovens Médicos de Família com o apoio  institucional da Associação Portuguesa de Medicina Geral Familiar (APMGF).
Este tipo de eventos serve para actualização de conhecimentos, troca de experiências e convívio com colegas.
Este tipo de eventos é também, infelizmente, canibalizado pelos currículos de quem os frequenta.
O currículo do interno de qualquer especialidade deve estar pejado de diferentes tipos de acções científicas - apresentações orais, pósteres, artigos, etc.. O que se espera é tenham um conteúdo decente e que tenham algum significado.
"Científico" é cada vez mais uma palavra de significado lato.
Fico embaraçado sempre que me dirijo ao espaço de exposição de trabalhos e me deparo com títulos engraçados mas nada científicos. Sacrificar o rigor por um título chamativo é exercício corrente nestes encontros. Escolher casos curiosos em vez de casos que possam educar os colegas para uma melhor pratica clínica é prática frequente.
Ainda assim, o último número do jornal da APMGF tem na sua primeira página que "o trabalho de equipa reforça programa técnico-científico".
Se calhar está na altura de reforçar também os critérios de submissão de trabalhos.
Quantidade versus qualidade - o conflito eterno. No entanto, é facilmente discernível quem está a ganhar essa luta.
Estou quantitativamente e qualitativamente cansado.